quarta-feira, 3 de abril de 2013

Escultor Aprendiz


― Pronto! ― invocou Lácio aliviado.
No exato momento em que terminara sua obra, a argila ensaiou alguns movimentos, sem qualquer coordenação. Por mais que Lácio fosse habituado à arte de esculpir, os primeiros minutos após o término das esculturas sempre lhe causavam ansiedade. Especialmente naquele prédio centenário em que ficava o colégio. Não é que Lácio não estivesse preparado para ver o seu desfecho, ao contrário. Sua coragem o deixava afiado para qualquer desdobramento a partir de então, para o bem ou para o mal; só que as últimas semanas haviam sido de tantas revelações, que andava desconfiado, como se a qualquer momento alguma novidade o surpreenderia novamente.
― Vai, levanta e dá alguns passos! ― incentivou em vão.
A escultura recém terminada continuava sem esboçar ação que remetesse a algum resquício de atividade coordenada. Não fossem espasmos aleatórios no solo, Lácio ter-le-ia dissolvido em água.
― Hum, deve ter faltado alguma coisa, mas eu segui à risca as orientações do professor.... Ah, é claro!
Olhando ao redor, percebeu que esquecera de polvilhar sobre sua escultura argilosa um pouco da tintura em pó, dada pelo Professor Renícolas, para concluir a tarefa. O pó continha propriedades mágicas. Sua origem e composição eram ignoradas por Lácio. Mas isso não o interessava àquela altura. Tudo o que ansiou fora ver concluída sua obra, o quanto antes.
― A aula já vai começar, é melhor eu acabar logo com isso.
Lácio lançou sua mão sobre o pequeno pires que descansava à mesa de madeira; com as pontas dos dedos, retirou uma pequena porção da tintura em pó e lançou-a sobre o boneco marrom.
O pó era branco, e mais parecia talco do que qualquer outra coisa. Se fosse amarelo, Lácio não seria capaz de diferenciá-lo. O quarto estava fracamente iluminado pelo candelabro fixado na parede à altura da maçaneta da porta. Pra piorar, as paredes cinzas, de pedra aparente, pouco refletiam a vacilante luz que queimava no objeto. Ao menos a ausência de janelas não permitia a passagem de correntes de ar que pudessem ameaçar a tranquilidade das chamas. O Atelier em que se encontrava Lácio não era dos mais aprazíveis. O chão, também de pedra, há tempos não sentia as cerdas das vassouras. Era tanta a poeira acumulada no chão que, vez ou outra, arrancavam do aprendiz alguns espirros.
As partículas da tintura em pó lançaram-se calmamente dos dedos de Lácio e, com absoluta suavidade, aterrissaram sobre o boneco de massa fresca. Cada partícula que tocava a superfície da argila produzia um lindo efeito de resplandecência: cintilava lindas luzes brancas, como faróis de carros ao término da estrada, e se incorporava ao material amarronzado, transformando-o num belo branco aveludado.
― Dá gosto de ver, mesmo! ― falou Lácio consigo mesmo.
Em poucos segundos, o boneco de argila, aparentemente inacabado, havia incorporado para si todo o “talco mágico”: o que antes era marrom tornou-se branco gélido. Os movimentos involuntários da pequena escultura também cessaram. Lácio continuou aguardando pacientemente. Mais alguns segundos e nada de movimento. Mais alguns outros, e também nada.
Permaneceu sem esboçar reação, mas as transformações continuavam. A pequena escultura, agora friamente branca, passava por alterações ainda mais interessantes. Claramente sofria um pequeno ajuste de proporções, de melhoria do acabamento, por assim dizer. Muito embora fosse um exímio escultor para sua idade, tendo iniciado na arte pelas mãos de seu Pai antes mesmo de aprender a falar e a andar, esculpir bonecos daquele tamanho, tão pequeno quanto uma laranja lima, era difícil para qualquer escultor profissional, quanto mais para um jovem como ele. Problemas no acabamento destes pequenos objetos são mais do que naturais, pela própria limitação imposta pelos brutos instrumentos utilizados. Apesar disso, Lácio não esquecera das palavras de seu professor ― comece pequeno, para não se cansar demais.
― Acho que levei as recomendações muito ao pé da letra ― pensou o jovem aprendiz ― talvez algo do tamanho de uma bola de futebol fosse melhor.
Em pouco tempo, as transformações mágicas que se seguiram à salpicada do do pó mágico cessaram por completo. A escultura, perfeitamente proporcional em todas as suas partes e notadamente recortada por relevos e depressões que lembravam os músculos humanos, restava deitada ao solo, imóvel. O pequeno boneco argiloso ficara muito melhor acabado. Tinha a silhueta do corpo humano, apesar do branco gelo que lhe recobria, e o pequeno tamanho.
― Hum, segundo o manual, agora eu preciso invocar alguma palavra de ordem. Tipo... Anda!? ― hesitou o jovem, enquanto folheava as páginas do Grimório do Escultor ― ou, apenas, manual ― recebido de seu mestre, tentando farejar pistas sobre o que fazer em seguida.
Lácio por alguns instantes desviou sua atenção da escultura recém acabada, enquanto procurava maiores detalhes no texto. Deparou-se com o seguinte parágrafo:

Uma vez concluída sua obra, o criador deverá invocar verbos no imperativo a fim de comandar sua criatura. Lembre-se que tudo aquilo que precisar ser dito, na verdade não precisa, basta ser pensado: a idéia origina a obra, o coração a desenvolve, e as mãos a aperfeiçoam.
           
            No canto da página, à caneta, Lácio leu a anotação que ele mesmo fizera na aula do Professor Renícolas, naquela manhã: O criador é igual à criatura. Um coração, uma mente, um desejo.
            ― Na aula isso pareceu ter mais sentido, mas agora tá uma viagem só ― asseverou Lácio, coçando a cabeça ― mas vamos fazer como manda o livro. Anda! ― comandou.
            Ao retornar os olhos para o chão, onde deveria estar sua mini escultura, Lácio tem uma surpresa.
            ― Sumiu! Cadê? Tava aqui no chão, quietinha. ― reclamou, visivelmente irritado.
            Imediatamente, Lácio começou a procurar a sua volta. Embaixo da cadeira, debaixo da mesa, atrás da porta, nas paredes e no teto ― afinal, era bem provável que um ser desses aí subisse pelas paredes. Quem sabe até voasse.
            ― Esse pedaço de barro deve ter obedecido ao meu comando já na primeira vez, enquanto eu ainda tava folheando o Livro ― pensou ― mas deixa pra lá. Depois eu procuro, vou pra sala que já passou da hora.
            Sem saber onde o boneco de talco (como ficou apelidado tempos depois) havia se metido, Lácio empurrou todos os instrumentos espalhados sobre a mesa para dentro da mochila, retirou às pressas o avental e, atrasado, tomou o rumo da sala de aula, a passos largos.
            ― É hoje que o Prof. Renícolas não sai do meu pé.



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segunda-feira, 1 de abril de 2013

Gorruks


As terras de Roritz ficavam próximas ao vilarejo de Jorli, sendo as únicas habitáveis ao norte da comunidade, em meio à extensa floresta de Ruteban. Aqueles pedaços de terra ao norte, onde o Roritz se estabelecera, eram devolutas, sem reino e sem dono, guardando em seu ventre o mistério secular de desaparecimentos e histórias camponesas sobre criaturas tenebrosas e armadilhas da mata virgem.
        
         Não obstante todos os alertas das pessoas para que ninguém se aproximasse das terras do norte, houve o dia em que os Irmãos adolescentes Alish e Dalaum do vilarejo, imprudentemente, resolveram desafiar os limites de Jorli.

         - Hoje vamos fazer algo diferente, Alish – disse Dalaum.
         - Eu não me meto mais em confusão! Na última vez que você teve uma idéia diferente, passamos 3 dias de castigo. – Respondeu Alish, desconfiado.
         - Ah, meu irmão! Você sabe que o gordo do Groto armou para a gente! Não fosse aquele idiota, nós pegaríamos algumas poções do Sábio das Raízes, e ele nunca teria percebido! – Retrucou Dalaum.
         - Isso é verdade, eu nunca gostei daquele gordo.
         - Então, tá afim de saber o que tenho de diferente pra gente hoje? – Perguntou excitado Dalaum.
         - O que é?
         - Vamos para as terras do norte, Haha!
         - Você está louco Dalaum? As terras do Norte? Eu não pretendo ignorar todos os alertas que recebemos para ficarmos longe de lá! – exaltou Alish. - Além da mata fechada, há as terras do Velho Roritz, que todos conhecem, mas que ninguém nunca viu!
         - Ah, eu não acredito nisso! Como é que meu irmão gêmeo pode ser tão medroso assim? – respondeu Dalaum, numa tentativa clara de fazer Alish mudar de idéia. – Não lembra o que ouvimos na taberna? Ninguém nunca se atreveu a atravessar a fronteira das terras do norte, mas nós o faremos! Voltaremos com a notícia de nossa ida e seremos reconhecidos na cidade! Será o nosso momento!
         -  Mas e se o velho Roritz resolver nos aprisionar, ou sei lá, fazer algum tipo de mal pra gente?
         - O velho Roritz? – questionou Dalaum. – E porque um velho solitário iria nos incomodar? Vamos logo, que conseguiremos voltar antes do anoitecer.
         Dalaum puxou seu irmão pelo braço. Apesar de não muito convencido do empreendimento, Alish consentiu e ambos saíram em direção ao norte, por uma trilha tortuosa e pouco utilizada. Na medida em que se afastavam de Jorli, o caminho tornava-se mais estreito. A mata, cortada pela trilha, que antes não passava de vegetação rasteira à altura do joelho, foi ganhando volume. Em alguns minutos de caminhada os gêmeos perceberam que, em pouco tempo, não seriam capazes de mirar o horizonte. 
         - Dalaum, acho melhor nós voltarmos. Já não consigo ver mais nada, só mato!
         - Por favor, Alish, deixa de ser chorão! Já estamos chegando, veja a placa ali adiante!
          A alguns metros dos irmãos jazia uma placa com os dizeres “Terras de Roritz – não ultrapasse”. A placa, de madeira, já estava ali há alguns anos, toda carcomida pelo tempo. Restava presa por um prego no canto superior direito, fixando-a ao tronco seco de uma árvore, morta de velha. Como estava pregada apenas numa de suas extremidades, a sinalização pendia inclinada, e movia-se sob qualquer sinal de vento.
        
         - Dalaum, eu não vou me enfiar em Ruteban, não! A cada passo que dou me lembro das histórias de desaparecimentos! Já sumiu gente lá de Jorli! – disse, assustado, Alish.
         - Alish, mas as terras de Roritz são aradas! E se o são, essa Floresta não vai durar muito tempo, em breve encontraremos o clarão aberto pelo homem!
         - Eu não tenho tanta certeza disso, não! – respondeu Alish, mas, novamente, cedeu à persuasão do irmão e continuou.
         De fato, a conclusão ao qual chegara Dalaum estava certa. Apesar da exuberante Floresta que se formava a partir da placa, a trilha seguia, e, mais ao longo, era possível ver um feixo de luz por entre as árvores.
         - Eu não te falei, Alish? Olhe lá ao longe. Já consigo ver a saída da Floresta. Ali ficam os campos arado de Roritz!
         Alish não respondeu, estava preocupado demais em sair de dentro daquela Floresta. Claramente apavorado, a adrenalina que corria seu corpo aguçara-lhe os sentidos. Tinha a impressão de que tudo fora amplificado. Ouvia com absurda clareza o quebrar de galhos e folhas secas, acumulados no chão durante anos, que gritavam quando importunados pelo pisar dos irmãos. Percebia cada grão de poeira que pairava na atmosfera ao redor. O simples bater das asas de um gafanhoto parecia turbinas em meio à imensidão e ao silêncio da floresta.
Dalaum, por outro lado, excitado pela aventura, não pensava em outra coisa senão em chegar ao outro ponto da mata, ignorando a aura de terror existente.
         Os irmãos avançavam lentamente pela trilha estreita, ora se debruçando por sobre troncos caídos à trilha, ora se esgueirando por debaixo deles, quando não fosse possível sobrepô-los. Apesar de aparentemente estática, Alish tinha a sensação de que a mata os observava, e vez ou outra poderia ouvir a movimentação de animais ou o que quer que fosse, pouco atrás deles.
         - Dalaum, chega! Esta Floresta está à nossa espreita, eu vou voltar!
         - E vai voltar sozinho? Porque eu vou seguir adiante! Se tiver coragem que volte! – Dalaum, então, agarrou-se a um cipó que pendia próximo, e tentou escalar um tronco que obstruía o trajeto.
         Que besteira fiz em ter vindo, pensou Alish.
         Dalaum, como sempre, sabia conduzir o irmão. Apesar de gêmeos, Dalaum sempre foi o irmão dominante, impondo sua vontade à Alish, seja de maneira graciosa ou grosseira.
         Enquanto aguardava o irmão superar o obstáculo à frente, Alish sentiu algo lhe fisgar a perna direita. Desesperadamente, começou a gritar – Fui mordido Dalaum, socorro!.- Sacudiu a perna, tentando desvencilhar-se do que quer lhe houvesse mordido. Tropeçou numa enorme raiz e caiu de costas sobre um arbusto à esquerda da trilha. Durante a queda, tentando agarrar-se a alguma coisa, seu braço esbarrou numa corda fixada à horizontal a 1 metro do chão, ativando um mecanismo engenhosamente arquitetado. Subitamente, uma rede surgiu do arbusto, subindo em direção à Alish, evitando sua queda, mas alçando-lhe a 3 metros de altura. Dalaum, que ainda tentava entender o que estava acontecendo, ficou imóvel.
         Alish caíra numa armadilha que, pelas condições, certamente fora armada por Roritz, pensaram. Os irmãos, entretanto, não sabiam se a armadilha era para animais ou para intrusos.     
         - Caramba Alish, em que foi se meter? – Disse Dalaum, tentando descer do tronco que havia escalado a pouco.
         - Eu te falei Dalaum, não deveríamos ter vindo! E agora como é que eu saio daqui?  - berrou Alish, enquanto pendulava no alto da árvore.
         - Eu sei lá!
         - Dá seu jeito! É culpa sua! – respondeu indignado Alish.
         - Ahhh, mas você só faz besteira mesmo! Foi dá chilique por causa de um mosquitinho que te picou, deu nisso!
         Enquanto tentavam analisar a armadilha e descobrir de onde vinha ou para onde ia a corda que alçara a rede, uma voz adocicada rompeu o silêncio da floresta.      
         - Deixem que eu ajudo.
         Era a voz de uma menina encantadora que, estranhamente, vencia os obstáculos da floresta com a graciosidade de uma pomba que corta os ares na primavera. Seguiu em direção aos irmãos e parou. Os meninos fitaram-na, sem entender muito bem como uma menina poderia ajudá-los. Permaneceram imóveis e em silêncio.
         - Eu conheço a armadilha, fui eu mesma quem a armou. – Disse a menina, tirando do bolso um pequeno canivete.
         - É, e me parece que funciona muito bem. – respondeu Dalaum, balbuciando as palavras, sem saber ao certo o que dizer.
         - Fico feliz em ter sido cobaia do seu experimento! – retrucou Alish, visivelmente irritado, enquanto coçava a picada que recebera na perna.
         - Me desculpem, é que estou tentando capturar um Gorruk para meu pai. Ele anda bastante debilitado e eu sempre procuro ajudá-lo. Cuidado ao cair! – E, num golpe rápido com o canivete, cortou a corda, que descia camuflada por uma árvore próxima, a alguns metros de onde Alish havia sido capturado.
         - Esper.... Aaai! – sem tempo para se preparar, Alish despencou e pouso desengonçado no arbusto abaixo de si. Um pouco atordoado pela queda, tentou se desvencilhar da rede que lhe recobria, sem muito sucesso.
         - Mas afinal, quem é você?
- Qual o seu nome?
- Você não é de Jorli, ou é?
-O que seria um Gorruk? – perguntaram intercaladamente os irmãos. As perguntas eram tantas que não sabiam nem por onde começar.
         - Calma gente, vamos por partes, né? Eu me chamo Rabunjja e moro dentro da Floresta, quer dizer, não moro na mata, mas na Floresta, entenderam?
         - Não, não entendi! – Disse Alish – Só quem mora em Ruteban são o velho Roritz e tudo o que há de mal nesse mundo! E agora você ainda vem me falar de Gorruks, que não duvido seja alguma praga que ande à espreita nesse matagal...
         - Deixa de ser bobo, Alish! Já te falei pra não acreditar naquele monte de conversa fiada do povo de Jorli. – respondeu Dalaum que, virando-se para a menina, emendou: -  Sabe, Rabunjja, meu irmão é meio medroso..
         - Não sei o que contam em seu vilarejo, mas Roritz é meu pai.
         Para a surpresa dos irmãos, a menina disse ser filha do velho Roritz, um homem misterioso que todos acreditavam ser solitário. Isso era realmente intrigante. Os gêmeos entreolharam-se, pareciam não acreditar. A menina continuou.
         - Além disso, o que falam sobre os males da floresta não é de todo mentira, Dalaum. Você deveria ser mais cauteloso. Ruteban guarda segredos a muito escondidos da humanidade que, se revelados, provavelmente levariam os homens à loucura.
         Dalaum engoliu a seco. Sempre fora descrédulo a respeito de histórias fantásticas. Só que, em meio a Floresta, com uma menina estranhamente segura, que caçava Gorruks (ainda que não soubesse o que fossem essas criaturas), tudo parecida verdade. Sua coragem, em poucas palavras, se esvaecera. Era melhor voltar para casa, o quanto antes!
         - Sabe Rabunjja, obrigado por nos ajudar, tá! Não vamos mais atrapalhar sua caçada, eu e meu irmão estamos de saída! – Disse Dalaum, ajudando Alish a se levantar após se livrar da rede.
         - Mas não querem saber o que são Gorruks? – falou Rabunjja. – E acho que já está um pouco tarde para vocês irem embora, o sol já está se pondo. Certamente não atravessarão a Floresta antes de escurecer. É melhor virem comigo.
         Mais uma vez, os gêmeos trocaram olhares. De fato, o sol já estava se pondo. O tempo passara no interior da Floresta e, apesar de aparentemente próximo da entrada de Ruteban, muitas horas haviam se passado desde que se lançaram na aventura.
         - Dalaum, eu não pretendo passar a noite dentro desta Floresta, ainda mais depois de tudo que ouvi, eu vou com a Rabunjja, e acho melhor você também vir!
         Desta vez, Dalaum foi quem consentiu. Ainda que, orgulhoso, desejava seguir seu próprio caminho, Rabunjja o encantara. Verdade ou não, eles não tinham muita opção. Muito embora se sentiam perto de Jorli, se a noite já estava para chegar, é porque horas haviam se passado dentro da floresta. Ruteban pregava peças, e não foi diferente com os meninos.
         Rabunjja tomou a frente da trilha. Os irmãos, instintivamente, à seguiram. Apesar de, inicialmente, terem confiado na estranha menina, ambos estavam incompreensivelmente ansiosos e ofegantes.
         - Dalaum, eu não estou me sentindo bem. Sinto como se algo de muito ruim estivesse me sufocando – sussurou Alish, esperando não ser ouvido.
         Dalaum não esboçou reação. Estava com sua visão fixada em Rabunjja, que andava à sua frente. Só agora o menino reparava nas vestes garota. Ela trajava um vestido negro, sem qualquer cor que lembrasse a alegria das jovens de sua idade. Percebera, ainda, que não havia calçado que protegesse os pés da jovem.
         - Seus pés não tocam o chão, Alish.
         - O quê?
         - Os pés da menina não tocam o chão. Ela caminha, mas não pisa – falou Dalaum.
         - Você está louco, Dalaum? – respondeu o irmão – Não vê que ela é uma menina como nós?
         Neste momento, Dalaum segurou o braço do irmão e o fez parar. Um silêncio ensurdercedor se fez ao redor dos meninos. Rabunjja continuou seu caminho, à frente da trilha.
         - Está ouvindo ela pisar? – disse Dalaum. Enquanto andavam, era possível escutar uma infinidade de sons advindos da caminhada dos meninos. Folhas secas, galhos quebrandos, grunhidos de pequenos animais. Mas, tão logo pararam, os sons desapareceram.
         - Seus pés não tocam o solo, Alish. Ela flutua, por isso não se faz barulho quando caminha – apavorado, sussurou Dalaum, sem se importar com um mosquito que lhe pousara na ponta do Nariz.
         - Dalaum, já vai escurecer. – falou Alish, com uma voz aparentemente tranquila, tamanho era seu desespero. Ambos recebiam uma enxurrada de pensamentos aterroziantes. Jaziam sobre seus pés, hipinotizados pelos seus próprios devaneios. A noite já tomara forma no céu. Absoluta, pairava a lua. Em poucos minutos, o breu tomaria conta de tudo aquilo.
         - Não trouxe fósforo – respondeu Alish. Eles jamais poderiam imaginar ficar tanto tempo no interior de Ruteban. Não a ponto de precisarem fazer uma fogueira para espantar a escuridão.
         Assim como eles, Rabunjja havia parado de caminhar. Aguardava-os, de costas para os meninos. Até que, de repente, a menina passou a entoar um canto.
                  
Gorruks, Gorruks, Gorruks,
Chegam para o jantar
Gorruks, Gorruks, Gorruks,
Do cérebro ao calcanhar

Traz pra fogueira
Pro caldeirão
Joga o caldo
Faz o pirão

Cabelo e lábios a deliciar
Pés fincados no chão

Ao término da cantoria, raízes negras, repletas de ranhuras em sua superfície, sairam do chão abraçando os pés dos irmãos. Os meninos tentaram pular e se desvencilhar, mas as raízes eram infernamente ágeis, a ponto de laçar seus pés em pleno ar, trazendo-os de volta para o chão.
- Dalaum, nossos pés, estamos presos – berrou Alish – Socorro!
O pedido de socorro foi em vão. Estavam perdidos na claustrofóbica floresta. Impossibilitados de correr, sem ter a quem pedir auxílio. Não lhes restava alternativa.
- Rabunjja, estamos presos, nos ajude! – falou em voz alta Dalaum, tentando desesperadamente obter qualquer ajuda, ainda que seu instinto dissesse que Rabunjja os levara diretamente para o limiar da morte.
- Hahaha, é claro que estão presos! Não ouviram a canção do Jantar? – disse Rabunjja. Sua voz mudara por completo, o timbre suave e melancólico que antes se apresentara aos meninos havia se tornado macabro. Sua risada, aguda e arranhada, causava arrepios nas espinhas dos irmãos.
- Há tempos minha armadilha para Gorruks não funciona tão bem. Papai terá uma bela refeição! – concentrando-se nos irmãos, os olhos de Rabunjja avermelharam-se, sua pele enrugou-se e seu corpo se curvara. A menina revelava sua verdadeira face.
- Bruxa Rabunjja, para vocês, seus meninos insolentes – e, num estalar dos dedos, as raízes que inicialmente recobriam os pés de Alish e Dalaum, foram, lentamente subindo pelas suas pernas, tronco e, finalmente, cabeça.
- Ah.... – foi o grito de dor e desespero dos gêmeos, rapidamente abafado por espessas e densas raízes negras, que encobriram seus rostos.
Em seus últimos segundos de consciência, no últimos resquícios de ar em seus pulmões, Dalaum percebera:
          - Gorruks somos nós, refeição para esta bruxa maldita – e então, tudo escureceu.                         
          Nunca mais se ouviu falar dos irmãos.


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sábado, 30 de março de 2013

Vampiros de Hostite - a transformação


Achavam que vida e morte eram opostos. Opostos porque, em essência, eram a negação de um pelo outro, mas se atraíam continuamente: não há vida sem morte nem morte sem vida. Era tudo que deveriam saber, porque era tudo que havia para ser conhecido. A sabedoria camponesa tem a pretensão de explicar os fenômenos que vão além da matéria com base em suposições sustentadas pela lógica, mas que beiram a loucura. A loucura é inerente ao ser humano, derivada do desespero. Àquela época, o desespero e a ignorância eram a regra, a ponto de uma falsa verdade alçar-se à verdade absoluta pelo simples fato de reverberar nos ouvidos das massas. Qualquer crença que fosse capaz de conceder sentido à vida seria suficiente para tornar soberbos os conhecedores, e servos os que não a compreendiam.

Pautaram suas vidas nesta dualidade. Para que viver tivesse sentido era preciso afastar-se da morte. Em meio à alucinação coletiva, numa tentativa instintiva de integração a uma instância superior - fosse ela divina ou demoníaca -, ignoravam os pequenos sinais que o mundo real lhes concedia, mostrando o caminho da verdade. Ainda que a morte se fizesse mais presente que a vida, em razão de tantas doenças degenerantes, guerras, festivais populares de sacrifícios e execução de criminosos, insistiam em superá-la.

Naquele desespero coletivo, na busca incessante por conceder sentido à vida, tratavam a morte como inimiga a ser combatida. Mas como combater algo impossível de ser derrotado?  O dilema, que se perpetuava ao longo dos séculos, houvera sido enfrentado por hábeis das mais diversas especialidades: bruxos, padres, feiticeiros, guerreiros, reis e rainhas. Todos já haviam despendido suas fórmulas, magias, fortunas, castelos, exércitos e vida na persecução da resposta, mas todos haviam fracassado.

Assim, sabiam que enfrentavam um inimigo sem pontos fracos. A morte não poderia ser domada, conduzida, ter seu fluxo alterado ou tornada mais amena. A morte era simplesmente isso. Morte. Sem começo, sem meio, apenas fim.

Neste contexto de cegueira coletiva de dualidade entre vida e morte, a melhor maneira de se afastarem da morte era exaltando a vida. Àquela época, a ignorância camponesa não permitia fazer tal discernimento racionalmente, mas discerniam-na instintivamente: viver em meio à morte e a execuções tornara-se recorrente. Matar era institucionalizado, motivo de festa e de circo. Lançavam pessoas à fogueira. A tortura, passa tempo de final de tarde. Criminosos lançavam-se aos pântanos amaldiçoados, numa fuga desesperada dos populares que os caçavam para entregá-los aos Senhores Justos, e reivindicavam como única recompensa o papel de carrasco na execução.

Presenciar a morte era um consolo à própria vida.

Preocupados demais em se sentirem vivos, matavam. Idolatravam quem fosse capaz de extrair a vida, e seguiam quem quer que lhes proporcionem estes prazeres. Os Carrascos eram os heróis do povo; instrumentos de consolação à própria existência. Ainda que a sensação fosse efêmera, sabendo que pouco tempo depois retornariam ao estado natural de desespero - de alucinação em busca de um significado -, naquele curto momento de presença da morte encontravam a serenidade. Estavam vivos e isto, por si só, era suficiente.

Foi então que as guerras se tornaram motivo de glória e satisfação. Matar proporcionava a sensação de haver cruzado o limiar da vida-e-morte cuja travessia apenas aos seres espirituais fora permitido; as vitórias campais entregavam riquezas derivadas dos espólios de guerra, alçando-os a guerreiros vitoriosos. Manipular a lança e a espada eram virtudes capazes de conduzir à elevação espiritual. Matar de próprio punho era mais efetivo que assistir às execuções do Carrasco; os sons metálicos do aço tocando-se nas lutas campais, das flechas cruzando os ares, e os grunhidos e gemidos de suas vítimas traziam a intensidade e satisfação que carrasco nenhum seria capaz de proporcionar.

Qualquer um poderia servir à luta armada. O reino era governado pelo patriarca Hostite. Hostite acreditava na seleção natural militar. O homem que não soubesse empunhar uma lança e vencer em campo de batalha, não mereceria a vida, e, por isso, deveria morrer em luta. Seus métodos eram práticos, não acreditava em treinamentos, em lutas simuladas com espadas inofensivas. Se fosse para empunhar a lâmina, que fosse para tirar a vida do adversário, ou para morrer. Tamanha rigidez de conduta mantinha-os sempre no limite. Estavam preparados para viver, e mais ainda para matar. Rei Hostite conduzira seu reino a um dos maiores do continente. Seus súditos guerreiros foram temidos e idolatrados, odiados e saldados, eram quase como a vida e a morte.

Até que matar não os regalava com os mesmos prazeres. Na medida em que matavam, o ato perdia seu efeito. Como tudo, caíra na rotina. Perdera seu mote, sua força. E, enquanto sentiam que a contemplação da morte não era mais suficiente para sua elevação espiritual, desejavam matar ainda mais a fim de justificar sua existência. Nesse momento houve um desequilíbrio. Se antes contemplar a morte apresentava-se como uma forma de exaltar a vida, depois, a exaltação da morte passou a ser a razão de suas existências.

A oposição se desfizera. Vida e morte não eram mais contrários, andavam paralelamente. O exército de Hostite havia aprendido a buscar a morte como um complemento à própria vida; eram estados intrínsecos um ao outro, compensavam-se e retro-alimentavam-se; não havia oposição, senão cumplicidade e complementação.

Entenderam.

Contemplar a extração da vida não mais fazia parte de seus ideais. Queriam a morte para eles mesmos. Suas batalhas e guerras campais ficaram menos numerosas e mais intensas. Não espoliavam mais as cidades, não desejavam objetos luxuriosos, jóias ou terras. Tudo que ansiavam era retirar a vida de todos aqueles que cruzassem seus caminhos. Cravar a espada não era tão prazeroso quanto penetrar a carne com as unhas. Matar se tornou um ritual. Apesar da desordem das batalhas, cada momento era minuciosamente aproveitado, deliciado e regozijado. Podiam sentir o cheiro da carne por morrer. Desenvolverem a preferência por batalhar ao anoitecer. Quanto mais densa a noite, mais serena a floresta e mais alto fossem as labaredas das fogueiras, maior o transe no qual se inseriam.

Não poderiam mais viver sem carne nem sangue. Da utilização da espada como arma, passaram às unhas; das unhas aos dentes. O ato de matar exigia mais doação, mais cumplicidade entre o viver e o morrer. Quanto mais intenso fosse o momento, quando mais trouxessem para o seu próprio corpo a vida do outro ser, maior seria sua elevação e satisfação. Matar se tornou um prazer. Morder a carne humana, arranhá-la com as unhas e embriagar-se em sangue eram os ápices de sua realização.

Seus hábitos promoveram mudanças em seus corpos. Tornaram-se mais rijos, mais fortes, mais pálidos; os olhos avermelharam-se, tal como o sangue que ingeriam diariamente. Digerir a carne humana tornava-os menos homens. Seus sentidos se aguçaram: ouviam melhor e mais longe, os olhos adaptaram-se à escassez da luz noturna e seus olfatos percebiam odores a centenas de metros de distância. Ficaram menos propensos a doenças. A conduta diabólica que haviam ingressado implementou mudanças em suas existências tanto em âmbito carnal quanto espiritual. Não eram mais seres humanos. Haviam cruzado o limite da deliquência e da própria vida.

Mudaram para melhor.

O exército passou a comandar a si mesmo. Hostite enlouquecera ao perceber que seu excesso de rigidez fizera de sua armada um grupo de canibais insaciáveis. Antes, porém, tentou impedi-los, sem sucesso. A consciência de grupo de seu exército já se formara. Não desejavam mais parar de guerrear, pois, a carne humana tornara-se seu vício. Não lutavam por bandeira senão sua própria. Vagavam pela noite em busca da próxima aldeia, sempre sedentos por sangue. Mas Hostite, que fora o grande mentor, o responsável pela criação da armada da morte, apesar da traição, seria sempre a referência do grupo. Era admirado pelo chefe que fora. Por isso, foi capturado e banqueteado por cada um daqueles guerreiros que lhe haviam jurado proteção eterna. Tiveram todos a oportunidade de provar um pouco da carne real e ingerir sua história a fim de imortalizá-la em seus corpos demoníacos.

Histórias sobre as batalhas espalharam-se pelo continente. Os poucos que sobreviveram à voracidade dos ataques bradavam a todos os ventos sobre os terrores que lhes acometeram. Falavam de homens cinzentos, com força desumana, de olhos que lacrimejavam sangue, que matavam com unhas e dentes e só atacavam à noite. Falavam deles. Cantavam sobre eles. 

Em sua loucura coletiva, na tentativa desesperada de se afastar a morte, descobriram que não há nada a ser afastado. Viver e morrer andam lado a lado; somente serão capazes de viver eternamente aqueles que aprenderem a apreciar e a ingerir a morte. Esta era a verdade que todos buscavam, mas que apenas aqueles homens haviam encontrado. Vislumbraram o sentido da vida na morte, por ela alcançando a imortalidade. Eles, Vampiros de Hostite, inauguraram uma nova era.

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