As
terras de Roritz ficavam próximas ao vilarejo de Jorli, sendo as únicas
habitáveis ao norte da comunidade, em meio à extensa floresta de Ruteban.
Aqueles pedaços de terra ao norte, onde o Roritz se estabelecera, eram
devolutas, sem reino e sem dono, guardando em seu ventre o mistério secular de
desaparecimentos e histórias camponesas sobre criaturas tenebrosas e armadilhas
da mata virgem.
Não obstante todos os alertas das
pessoas para que ninguém se aproximasse das terras do norte, houve o dia em que
os Irmãos adolescentes Alish e Dalaum do vilarejo, imprudentemente, resolveram
desafiar os limites de Jorli.
- Hoje vamos fazer algo diferente, Alish – disse Dalaum.
- Eu não me meto mais em confusão! Na última vez que você teve uma idéia
diferente, passamos 3 dias de castigo. – Respondeu Alish, desconfiado.
- Ah, meu irmão! Você sabe que o gordo do Groto armou para a gente! Não fosse
aquele idiota, nós pegaríamos algumas poções do Sábio das Raízes, e ele nunca
teria percebido! – Retrucou Dalaum.
- Isso é verdade, eu nunca gostei daquele gordo.
- Então, tá afim de saber o que tenho de diferente pra gente hoje? – Perguntou
excitado Dalaum.
- O que é?
- Vamos para as terras do norte, Haha!
- Você está louco Dalaum? As terras do Norte? Eu não pretendo ignorar todos os
alertas que recebemos para ficarmos longe de lá! – exaltou Alish. - Além da
mata fechada, há as terras do Velho Roritz, que todos conhecem, mas que ninguém
nunca viu!
- Ah, eu não acredito nisso! Como é que meu irmão gêmeo pode ser tão medroso
assim? – respondeu Dalaum, numa tentativa clara de fazer Alish mudar de idéia.
– Não lembra o que ouvimos na taberna? Ninguém nunca se atreveu a atravessar a
fronteira das terras do norte, mas nós o faremos! Voltaremos com a notícia de
nossa ida e seremos reconhecidos na cidade! Será o nosso momento!
- Mas e se o velho Roritz resolver nos aprisionar, ou sei lá, fazer algum
tipo de mal pra gente?
- O velho Roritz? – questionou Dalaum. – E porque um velho solitário iria nos
incomodar? Vamos logo, que conseguiremos voltar antes do anoitecer.
Dalaum puxou seu irmão pelo braço. Apesar de não muito convencido do
empreendimento, Alish consentiu e ambos saíram em direção ao norte, por uma
trilha tortuosa e pouco utilizada. Na medida em que se afastavam de Jorli, o
caminho tornava-se mais estreito. A mata, cortada pela trilha, que antes não
passava de vegetação rasteira à altura do joelho, foi ganhando volume. Em
alguns minutos de caminhada os gêmeos perceberam que, em pouco tempo, não
seriam capazes de mirar o horizonte.
- Dalaum, acho melhor nós voltarmos. Já não consigo ver mais nada, só mato!
- Por favor, Alish, deixa de ser chorão! Já estamos chegando, veja a placa ali
adiante!
A alguns metros dos irmãos jazia uma placa com os dizeres “Terras de
Roritz – não ultrapasse”. A placa, de madeira, já estava ali há alguns anos,
toda carcomida pelo tempo. Restava presa por um prego no canto superior
direito, fixando-a ao tronco seco de uma árvore, morta de velha. Como estava
pregada apenas numa de suas extremidades, a sinalização pendia inclinada, e
movia-se sob qualquer sinal de vento.
- Dalaum, eu não vou me enfiar em Ruteban, não! A cada passo que dou me lembro
das histórias de desaparecimentos! Já sumiu gente lá de Jorli! – disse,
assustado, Alish.
- Alish, mas as terras de Roritz são aradas! E se o são, essa Floresta não vai
durar muito tempo, em breve encontraremos o clarão aberto pelo homem!
- Eu não tenho tanta certeza disso, não! – respondeu Alish, mas, novamente,
cedeu à persuasão do irmão e continuou.
De fato, a conclusão ao qual chegara Dalaum estava certa. Apesar da exuberante
Floresta que se formava a partir da placa, a trilha seguia, e, mais ao longo,
era possível ver um feixo de luz por entre as árvores.
- Eu não te falei, Alish? Olhe lá ao longe. Já consigo ver a saída da Floresta.
Ali ficam os campos arado de Roritz!
Alish não respondeu, estava preocupado demais em sair de dentro daquela
Floresta. Claramente apavorado, a adrenalina que corria seu corpo aguçara-lhe
os sentidos. Tinha a impressão de que tudo fora amplificado. Ouvia com absurda
clareza o quebrar de galhos e folhas secas, acumulados no chão durante anos,
que gritavam quando importunados pelo pisar dos irmãos. Percebia cada grão de
poeira que pairava na atmosfera ao redor. O simples bater das asas de um
gafanhoto parecia turbinas em meio à imensidão e ao silêncio da floresta.
Dalaum,
por outro lado, excitado pela aventura, não pensava em outra coisa senão em
chegar ao outro ponto da mata, ignorando a aura de terror existente.
Os irmãos avançavam lentamente pela trilha estreita, ora se debruçando por
sobre troncos caídos à trilha, ora se esgueirando por debaixo deles, quando não
fosse possível sobrepô-los. Apesar de aparentemente estática, Alish tinha a
sensação de que a mata os observava, e vez ou outra poderia ouvir a
movimentação de animais ou o que quer que fosse, pouco atrás deles.
- Dalaum, chega! Esta Floresta está à nossa espreita, eu vou voltar!
- E vai voltar sozinho? Porque eu vou seguir adiante! Se tiver coragem que
volte! – Dalaum, então, agarrou-se a um cipó que pendia próximo, e tentou
escalar um tronco que obstruía o trajeto.
Que besteira fiz em ter vindo, pensou Alish.
Dalaum, como sempre, sabia conduzir o irmão. Apesar de gêmeos, Dalaum sempre
foi o irmão dominante, impondo sua vontade à Alish, seja de maneira graciosa ou
grosseira.
Enquanto aguardava o irmão superar o obstáculo à frente, Alish sentiu algo lhe
fisgar a perna direita. Desesperadamente, começou a gritar – Fui mordido
Dalaum, socorro!.- Sacudiu a perna, tentando desvencilhar-se do que quer lhe
houvesse mordido. Tropeçou numa enorme raiz e caiu de costas sobre um arbusto à
esquerda da trilha. Durante a queda, tentando agarrar-se a alguma coisa, seu braço
esbarrou numa corda fixada à horizontal a 1 metro do chão, ativando um
mecanismo engenhosamente arquitetado. Subitamente, uma rede surgiu do arbusto,
subindo em direção à Alish, evitando sua queda, mas alçando-lhe a 3 metros de
altura. Dalaum, que ainda tentava entender o que estava acontecendo, ficou
imóvel.
Alish caíra numa armadilha que, pelas condições, certamente fora armada por
Roritz, pensaram. Os irmãos, entretanto, não sabiam se a armadilha era para
animais ou para intrusos.
- Caramba Alish, em que foi se meter? – Disse Dalaum, tentando descer do tronco
que havia escalado a pouco.
- Eu te falei Dalaum, não deveríamos ter vindo! E agora como é que eu saio
daqui? - berrou Alish, enquanto pendulava no alto da árvore.
- Eu sei lá!
- Dá seu jeito! É culpa sua! – respondeu indignado Alish.
- Ahhh, mas você só faz besteira mesmo! Foi dá chilique por causa de um
mosquitinho que te picou, deu nisso!
Enquanto tentavam analisar a armadilha e descobrir de onde vinha ou para onde
ia a corda que alçara a rede, uma voz adocicada rompeu o silêncio da
floresta.
- Deixem que eu ajudo.
Era a voz de uma menina encantadora que, estranhamente, vencia os obstáculos da
floresta com a graciosidade de uma pomba que corta os ares na primavera. Seguiu em direção aos irmãos e parou.
Os meninos fitaram-na, sem entender muito bem como uma menina poderia
ajudá-los. Permaneceram imóveis e em silêncio.
- Eu conheço a armadilha, fui eu mesma quem a armou. – Disse a menina, tirando
do bolso um pequeno canivete.
- É, e me parece que funciona muito bem. – respondeu Dalaum, balbuciando as
palavras, sem saber ao certo o que dizer.
- Fico feliz em ter sido cobaia do seu experimento! – retrucou Alish,
visivelmente irritado, enquanto coçava a picada que recebera na perna.
- Me desculpem, é que estou tentando capturar um Gorruk para meu pai. Ele anda
bastante debilitado e eu sempre procuro ajudá-lo. Cuidado ao cair! – E, num
golpe rápido com o canivete, cortou a corda, que descia camuflada por uma
árvore próxima, a alguns metros de onde Alish havia sido capturado.
- Esper.... Aaai! – sem tempo para se preparar, Alish despencou e pouso
desengonçado no arbusto abaixo de si. Um pouco atordoado pela queda, tentou se
desvencilhar da rede que lhe recobria, sem muito sucesso.
- Mas afinal, quem é você?
-
Qual o seu nome?
-
Você não é de Jorli, ou é?
-O
que seria um Gorruk? – perguntaram intercaladamente os irmãos. As perguntas
eram tantas que não sabiam nem por onde começar.
- Calma gente, vamos por partes, né? Eu me chamo Rabunjja e moro dentro da
Floresta, quer dizer, não moro na mata, mas na Floresta, entenderam?
- Não, não entendi! – Disse Alish – Só quem mora em Ruteban são o velho Roritz
e tudo o que há de mal nesse mundo! E agora você ainda vem me falar de Gorruks,
que não duvido seja alguma praga que ande à espreita nesse matagal...
- Deixa de ser bobo, Alish! Já te falei pra não acreditar naquele monte de
conversa fiada do povo de Jorli. – respondeu Dalaum que, virando-se para a
menina, emendou: - Sabe, Rabunjja, meu irmão é meio medroso..
- Não sei o que contam em seu vilarejo, mas Roritz é meu pai.
Para a surpresa dos irmãos, a menina disse ser filha do velho Roritz, um homem
misterioso que todos acreditavam ser solitário. Isso era realmente intrigante.
Os gêmeos entreolharam-se, pareciam não acreditar. A menina continuou.
- Além disso, o que falam sobre os males da floresta não é de todo mentira,
Dalaum. Você deveria ser mais cauteloso. Ruteban guarda segredos a muito
escondidos da humanidade que, se revelados, provavelmente levariam os homens à
loucura.
Dalaum engoliu a seco. Sempre fora descrédulo a respeito de histórias
fantásticas. Só que, em meio a Floresta, com uma menina estranhamente segura,
que caçava Gorruks (ainda que não soubesse o que fossem essas criaturas), tudo
parecida verdade. Sua coragem, em poucas palavras, se esvaecera. Era melhor
voltar para casa, o quanto antes!
- Sabe Rabunjja, obrigado por nos ajudar, tá! Não vamos mais atrapalhar sua
caçada, eu e meu irmão estamos de saída! – Disse Dalaum, ajudando Alish a se
levantar após se livrar da rede.
- Mas não querem saber o que são Gorruks? – falou Rabunjja. – E acho que já
está um pouco tarde para vocês irem embora, o sol já está se pondo. Certamente
não atravessarão a Floresta antes de escurecer. É melhor virem comigo.
Mais uma vez, os gêmeos trocaram olhares. De fato, o sol já estava se pondo. O
tempo passara no interior da Floresta e, apesar de aparentemente próximo da
entrada de Ruteban, muitas horas haviam se passado desde que se lançaram na
aventura.
- Dalaum, eu não pretendo passar a noite dentro desta Floresta, ainda mais
depois de tudo que ouvi, eu vou com a Rabunjja, e acho melhor você também vir!
Desta vez, Dalaum foi quem consentiu. Ainda que, orgulhoso, desejava seguir seu
próprio caminho, Rabunjja o encantara. Verdade ou não, eles não tinham muita
opção. Muito embora se sentiam perto de Jorli, se a noite já estava para
chegar, é porque horas haviam se passado dentro da floresta. Ruteban pregava
peças, e não foi diferente com os meninos.
Rabunjja tomou a frente da trilha. Os irmãos, instintivamente, à seguiram.
Apesar de, inicialmente, terem confiado na estranha menina, ambos estavam
incompreensivelmente ansiosos e ofegantes.
- Dalaum, eu não estou me sentindo bem. Sinto como se algo de muito ruim
estivesse me sufocando – sussurou Alish, esperando não ser ouvido.
Dalaum não esboçou reação. Estava com sua visão fixada em Rabunjja, que andava
à sua frente. Só agora o menino reparava nas vestes garota. Ela trajava um
vestido negro, sem qualquer cor que lembrasse a alegria das jovens de sua
idade. Percebera, ainda, que não havia calçado que protegesse os pés da jovem.
- Seus pés não tocam o chão, Alish.
- O quê?
- Os pés da menina não tocam o chão. Ela caminha, mas não pisa – falou Dalaum.
- Você está louco, Dalaum? – respondeu o irmão – Não vê que ela é uma menina
como nós?
Neste momento, Dalaum segurou o braço do irmão e o fez parar. Um silêncio
ensurdercedor se fez ao redor dos meninos. Rabunjja continuou seu caminho, à
frente da trilha.
- Está ouvindo ela pisar? – disse Dalaum. Enquanto andavam, era possível
escutar uma infinidade de sons advindos da caminhada dos meninos. Folhas secas,
galhos quebrandos, grunhidos de pequenos animais. Mas, tão logo pararam, os
sons desapareceram.
- Seus pés não tocam o solo, Alish. Ela flutua, por isso não se faz barulho
quando caminha – apavorado, sussurou Dalaum, sem se importar com um mosquito
que lhe pousara na ponta do Nariz.
- Dalaum, já vai escurecer. – falou Alish, com uma voz aparentemente tranquila,
tamanho era seu desespero. Ambos recebiam uma enxurrada de pensamentos
aterroziantes. Jaziam sobre seus pés, hipinotizados pelos seus próprios
devaneios. A noite já tomara forma no céu. Absoluta, pairava a lua. Em poucos
minutos, o breu tomaria conta de tudo aquilo.
- Não trouxe fósforo – respondeu Alish. Eles jamais poderiam imaginar ficar
tanto tempo no interior de Ruteban. Não a ponto de precisarem fazer uma
fogueira para espantar a escuridão.
Assim como eles, Rabunjja havia parado de caminhar. Aguardava-os, de costas
para os meninos. Até que, de repente, a menina passou a entoar um canto.
Gorruks, Gorruks,
Gorruks,
Chegam para o jantar
Gorruks, Gorruks,
Gorruks,
Do cérebro ao
calcanhar
Traz pra fogueira
Pro caldeirão
Joga o caldo
Faz o pirão
Cabelo e lábios a
deliciar
Pés fincados no chão
Ao
término da cantoria, raízes negras, repletas de ranhuras em sua superfície,
sairam do chão abraçando os pés dos irmãos. Os meninos tentaram pular e se
desvencilhar, mas as raízes eram infernamente ágeis, a ponto de laçar seus pés
em pleno ar, trazendo-os de volta para o chão.
-
Dalaum, nossos pés, estamos presos – berrou Alish – Socorro!
O
pedido de socorro foi em vão. Estavam perdidos na claustrofóbica floresta.
Impossibilitados de correr, sem ter a quem pedir auxílio. Não lhes restava
alternativa.
-
Rabunjja, estamos presos, nos ajude! – falou em voz alta Dalaum, tentando
desesperadamente obter qualquer ajuda, ainda que seu instinto dissesse que
Rabunjja os levara diretamente para o limiar da morte.
- Hahaha, é claro que
estão presos! Não ouviram a canção do Jantar? – disse Rabunjja. Sua voz mudara
por completo, o timbre suave e melancólico que antes se apresentara aos meninos
havia se tornado macabro. Sua risada, aguda e arranhada, causava arrepios nas
espinhas dos irmãos.
-
Há tempos minha armadilha para Gorruks não funciona tão bem. Papai terá uma
bela refeição! – concentrando-se nos irmãos, os olhos de Rabunjja
avermelharam-se, sua pele enrugou-se e seu corpo se curvara. A menina revelava
sua verdadeira face.
-
Bruxa Rabunjja, para vocês, seus meninos insolentes – e, num estalar dos dedos,
as raízes que inicialmente recobriam os pés de Alish e Dalaum, foram,
lentamente subindo pelas suas pernas, tronco e, finalmente, cabeça.
-
Ah.... – foi o grito de dor e desespero dos gêmeos, rapidamente abafado por espessas
e densas raízes negras, que encobriram seus rostos.
Em
seus últimos segundos de consciência, no últimos resquícios de ar em seus
pulmões, Dalaum percebera:
- Gorruks somos nós, refeição para esta bruxa
maldita – e então, tudo escureceu.
Nunca mais se ouviu falar dos irmãos.
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